terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

06. a besta adormecida










1

       A chama do isqueiro estremeceu no escuro, quando o barco, trespassado pela ferrugem cruel da idade, partíu, soltando espirros de velhice. Enquanto isso, os cardumes, a morrerem de asfixia, começavam a despontar a pele grisalha das escamas.
       Acendi o cigarro e uma rajada de vento esbofeteou-me o rosto. Ajeitei  a gola do sobretudo ao pescoço frio e fiquei em silêncio, a escutar, no perfeito encanto dos fedelhos, o ruído brusco do barco, cada vez que as vagas embatiam com violência na couraça ferrugenta.
       No cimo, onde as nuvens corriam apressadas e onde a Lua a jazer de aborrecimento despontava a claridade dos olhos cansados, discerni o rasto de vultos a dançarem em desordem. E assim fiquei, com o cigarro esquecido no canto dos lábios, a recordar o voo picado das gaivotas, enquanto o barco, já longe, era agora o contorno magro de um corpo escanzelado, perdido no odor fétido do rio.
       Baixei os olhos e as pupilas perderam-se a contemplar os pequenos brilhos indefinidos, espalhados ao longe, muito para lá do barco, muito para lá de todo aquele mar cinzento. E quando o barco finalmente desapareceu do horizonte, discerni, num aperto voraz de vómito, o rasto já longo dos peixes mortos.
       Voltei-me e fiquei em silêncio, a perscrutar os ruidos que vinham da estação deserta. Algumas locomotivas jaziam de conformismo nos carris amolgados, enquanto o vulto de um vagabundo, sentado no chão, gemia versos de uma melodia popular qualquer. Com as mãos negras de lixo fazia gestos ordinários para os corpos estáticos das locomotivas e, os lábios, estraçalhados pelo frio, continuavam, num perfeito gesto conhecedor, a trautear os versos daquela melodia.
       E nesse instante, quando o sopro turbolento de uma locomotiva quebrou o alêncio, as luzes de um automóvel brilharam ao longe. O vagabundo ergueu-se, vacilou uns passos e desapareceu numa esquina, por trás de um manifesto neo-racista, daqueles que decoram as paredes com poéticas ordens de libertação e robustos esboços de um genial orgão fálico em decomposição.
       A locomotiva parou e um turbilhão de gente pareceu nascer do seu interior. Alguns soldados, de olhos esgazeados, procuravam na densidade opaca do nevoeiro que se começava a formar, a sombra inquietante do inimigo.
       Algumas mulheres correram apressadas para os lavabos, enquanto os homens, de rosto cansado, surripiavam pontas de cigarros esquecidas nos bolsos das calças. As crianças, magras e muito brancas, soltavam berros histéricos de nervosismo, na ânsia de espantarem com êxito o cansaço insustentável do dia.
       E foi quando o vagabundo surgíu, na mesma esquina, agora a mordiscar um prdaço de pão duro, que a encontrei. Estava em pé, junto ao automóvel, com as pontas dos cabelos a morrerem pelo pescoço. Ela sorríu-me uns lábios muito vermelhos e os seios, esborrachados num top preto, dançaram convulsivamente.
       Atrás dela, escondido pelas caricías indecentes do nevoeiro, um barco soltou um gemido retumbante e as gaivotas, a sobrevoarem sem pressas, abocanhavam com as garras, restos de migalhas que jaziam nos beirais de pedra.
       E nesse momento, quando o nevoeiro começava a envolver os nossos corpos e o cigarro me queimava os lábios, uma nesga de recordações rasgou-me as entranhas e fiquei, pasmado, a remoer o juízo em águas passadas.
       A carne foi-me trespassada por um frio terrível, enquanto as pernas a chocalharem com violência, pareciam ceder ao peso quase incomensurável dos ossos. Imagens soltas começaram a surgir-me à frente, numa amálgama histérica de corropios, em que corpos chocavam entre si, liquefeitos de júbilo. Vi uma língua rastejar sobre os meus olhos, enquanto umas unhas afiadas se me enterravam nas nádegas, comprimindo-me os lábios contra uns seios molhados, onde uns mamilos retesados me esperavam.
       Depois, quando me preparava para expelir o líquido emergente daquele enlevo, senti o peso desmedido de um chicote tocar-me as costas nuas. Tentei abrir a boca e gritar, mas dos lábios só irromperam alguns murmúrios roucos.
       Foi o semblante estropiado do vagabundo que, ao passar por mim, me despertou daquela alucinação gelada.
       Ana Carla continuava junto ao automóvel, a sorrir-me os lábios vermelhos.
       Pequenas gotas começaram a brotar do céu escuro e no momento em que, um barco assobiava um adeus apressado, as gaivotas rasgaram os céus num estrépito retumbante, olvidando o silêncio maçudo dos mortais em baixo.
       Tive um sonho assombroso, querida.
       Ela franzíu os lábios e encostou o rosto ao meu peito. Nesse instante, quando os nossos corpos se apertavam um contra o outro, o rasto gritante das gaivotas desapareceu; a amálgama de pequenas gotas que jaziam do céu, deram lugar a pesadas e frias lágrimas aguçadas e a minha paixão por Ana Carla pareceu morrer.
       Um barco ancorou ao largo, mas, ninguém saíu. Apenas a voz desarticulada do vagabundo ecoava por entre as bátegas da chuva. Apenas a força das ondas embatiam no pontão retesado de moluscos carbonizados, onde a respiração destes, transbordava de ruídos.
       Uma sombra, algo inquieta, surgíu detrás de uma locomotiva. O punho de um revólver cintilou por uns instantes quando o corpo da sombra mudou de posição. Um brilho metálico escapulíu-se-lhe da boca quando ergueu o objecto pungente da crucificação.
       A rapariga fechou os olhos quando sentíu, com gozo, o baton escorrer-lhe para a língua seca. Depois, num grito quase inaudível, o corpo tombou no chão molhado. Uma última súplica pareceu reluzir ainda quando os lábios se encontraram, num breve e estremunhado beijo.









2

       O vento soprava com violência enquanto a chuva, pesada e estridente, batia constantemente na vidraça da janela.
       À minha volta não existia quase nada. O esqueleto de um velho aparelho de hi-fi, a expelir os compassos insinuantes de Michael Nyman, morria junto a um sofá vermelho enquanto que do tecto, um candeeiro branco pendia silencioso. Tal como um vampiro adormecido, à espera do odor nauseabundo do sangue, olhava-me sem interesse.
       Ao fundo, na parede em frente, jazia o espectro empoado de um óleo de Salvador Dali. O quadro, de uma magnificiência perturbante, mostrava um homem completamente nu empunhando uma tosca cruz de madeira. Em frente, uma procissão de elefantes com pernas de aranhas desfilava numa harmonia de terror e sumptuosidade.
       Quando Michael Nyman deixou de suspirar no aparelho de hi-fi e o vento pareceu diminuir, a figura alta de um homem surgíu à soleira da porta da sala. Estava vestido de negro e dos lábios pendia-lhe a ponta esturrada de um cigarro mal apagado. Usava óculos escuros e tinha uma espécie de estilete pendurado ao pescoço. Quando penetrou na sala, envolto numa auréola de superlativa postura de carniceiro, o peso descomedido das suas Doc Martens ressoaram com estrépito. O meu coração, a pulular num frenesim histérico, quase me saíu pela boca fora.
       Não dissemos nada. Nesse momento, quando os nossos olhares trocavam repulsas incisivas e o meu coração parecia prestes a explodir numa gosma gorgolejante de carne retorcida e sangue pegajoso, só consegui pensar na minha velha mãe.
       Imagens soltas começaram a surgir de rompante pela vista dentro. Eram imagens distorcidas, como um aparelho de TV sintonizado num canal sem emissão. Contudo, as imagens eram-me familiares. O rosto arqueado da minha mãe apareceu por momentos, como uma aparição indegesta e, um sufoco tremendo prendeu-me a respiração. Vi-a sorrir com júbilo. Era o sorriso que todas as vezes me agradecia, cada vez que os meus lábios tocavam as estrias verdes da sua face. Sempre me impressionara beijar aquelas veias salientes, uma vez que esperava, a qualquer altura, que elas me rebentassem na cara.
       Vi tambem a morte. Os seus longos e esqueléticos braços pareciam querer sorver aquele pedaço balofo de carne desfalecida. Senti as batidas do coração alcançarem os píncaros do êxtase quando o rosto do demónio tomou forma.
      Vém! Xavier espera-te! A voz, contudo, não me pareceu satânica.
       Aonde?
       O homem olhou-me de soslaio e desapareceu num corredor intensamente frio. As Doc Martens tornaram a ressoar como um turbilhão de correntes ferrugentas. A sua sombra confundíu-se entre o emarenhado estrambólico de cadeiras partidas, aguarelas infindáveis de um amarelo berrante, caixotes por abrir e algumas garrafas vazias de Vodka. O seu corpo tornou-se consistente de novo quando, num suspiro mais de alívio do que de receio, entrámos numa sala bem mais quente.
       Até mim chegaram alguns gritinhos extasiantes e de novo começaram a brotar do meu cérebro cansado, ideias absurdas sobre o fim do mundo. Começava a ficar farto daquelas paranóias catalépticas que jorravam insistente-mente do meu cérebro.
       Uma porta abríu-se e uma rapariga entrou. Estava nua. O vermelho espesso dos lábios parecia laivos escarrados de uma pintura surrealista qualquer. Um vómito apressado arranhou-me a garganta quando Ana Carla, a olhar-me com estranheza, pronunciou o meu nome.   










3

       – Leva-me essa gaja daqui, Rui! – Berrou uma voz atrás da porta .
       As Doc Martens ressoaram muito perto dos meus ouvidos e depois afastaram-se, lentamente, em passadas curtas. Ana Carla desapareceu tambem. Já só pude ver, quando me voltei, a sombra recheada de dois palmos de carne branca violentamente rasgada, afastando-se, tambem ela, em lentos passos embriagados.
       – Entra, puto! – Ordenou a voz atrás da porta.
       E então imaginei que, ali algures, por detrás daquela porta, pudesse haver um caldeirão abrasado onde um demónio qualquer repelia com a cauda, o suco pastoso dos seus excrementos. Vi os meus olhos derreterem-se fantasticamente depressa quando transpús a soleira da porta.
       Xavier encontrava-se sentado numa cadeira de madeira toscamente trabalhada. Os seus olhos expeliam uma insolência desmedida e parecia encontrar-se completamente drogado.
       – Como está a queridinha da tua mãe, puto?
       Não podia ser um cumprimento mais saudável.
       – Tenho outro trabalho para ti – Retirou uma beata do bolso da camisa e prendeu-a entre os lábios. Uma chama estremunhou com dificuldade e logo uma baforada serpenteou no ar. Um odor como que a folhas de eucalipto ficou a pairar acima de nós. – Desta feita é algo mais pessoal.
       – Como assim? Ana Carla era-me mais que pessoal.
       – Claro, já me esquecia. O puto é um pobre coitado sem ninguém.
       – As coisas hão-de recompor-se.
       – As coisas nunca se hão-de recompor, puto! Nunca, enquanto os meus cães andarem atrás do teu cu.
       Tornei a ouvir, ao longe, as Doc Martens martelarem o soalho nu do corredor.
       – Podes pagar-me já, Xavier?
       O homem olhou-me despropositadamente para as mãos e depois perfurou-me a vista com um hálito quente de nicotina e haxixe.
       – Claro que te posso pagar já.
       O homem apagou a beata contra a sola da bota esquerda e ergueu-se, qual potente massa de calcário e argila. Colocou as mãos pesadas sobre os meus ombros e, por momentos, pareceu-me que os olhos podiam desprender-se-lhe a qualquer momento da cara, como duas ampolas sugadas para o espaço.
       – Que vais fazer a Ana Carla?
       – Hum! Ana Carla é um belo pedaço de míuda. Vai-nos render, de certeza, umas quantas massas valentes. Mas não te preocupes, puto, não a vamos matar.
       – E quando derem pela falta dela, Xavier?
       O homem lançou uma gargalhada estridente e depois apertou-me as duas bochechas com os dedos amarelos.
       – Tu sabes como nós trabalhamos, puto.  Quando as coisas correm bem, quando as míudas se portam de modo correcto, todos nós somos felizes. O resto não interessa. A família dela agora somos nós.
       Para Xavier tudo era muito simples. Até o facto de eu passar a pertencer à sua elite de assassinos e estupores sem consciência, era um facto mais que consumado da minha existência. Estava como que predestinad, à muito, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu, um pobre coitado habituado a trabalhos de merda, envolto numa seita crapulosa! Só de pensar dava-me arrepios. Por outro lado, precisava de dinheiro. Endividado como estava, mais crasso, para não dizer estúpido, seria não aceitar aquela oportunidade. De qualquer forma, os vícios sustentam-se com a maldita sobriedade do dinheiro e nada mais.
       – Que tens em ideia, Paulo?
       O nome! Ele havia pronunciado o meu nome. Era de facto um acto louvável. Já estava a ficar farto daquela conversa do puto.
       – Bom, o que quero dizer é que... – Hesitei. Xavier era um indivíduo com um temperamento psicológico algo instável. – O que quero dizer é que aceito, simplesmente isso.
       – Bravo, Paulo! Vejo que estiveste a trabalhar a massa cinzenta do cérebro. Um homem como tu dá sempre jeito.
       Nesse momento, a sombra do carniceiro de óculos escuros surgíu à soleira da porta. Trazia uma bolsa escura na palma da mão.
       – Aqui está o Rui com a tua recompensa, Paulo.
       Com uma certa indecisão, vi as minhas mãos avançarem periclitantes para a bolsa escura. Ao apertá-la contra o peito ofegante, esperei ouvir o tinir fraco das moedas a debaterem-se numa orgia louca de metal, mas, em vez do estrépito marulhar do níquel, apenas um denso vazio pareceu estrebuchar devaneios. Quando abri a bolsa, vários rostos de Anteros de Quental aparece- ram escarrados em infindáveis notas verdes.
       – Uma gratidão minha pelo teu próximo serviço, puto.
       Pronto, de novo aquela denominação ridícula e tão despropositada.
       – Pressuponho que seja uma condição irrevogável...
       – Evidente.
       – E qual é o serviço?
       – Matar a tua queridinha mãezinha – O cabrão não podia ter sido mais directo. – Vendo bem as coisas não me convém fornecer morfina a uma velha com os pés prá cova. É pouco ortodoxo para o meu ideal. E além disso é um peso que tiras dos ombros.
       Ideal? O homem estava a ficar paranóico. O gajo mal sabia escrever a porra do nome e vinha-me agora com ideais. Que grande filho da puta!
       Uma voragem pouco civilizada começou a nascer de dentro de mim, quando saí para a rua. Um dia destes Xavier tinha de morrer.
       A chuva havia parado mas, o céu, possesso de um cinzento carregado, expiava-me com os seus olhos pardos, prontos a segregarem de novo o líquido expurgante a que os mortais chamam de chuva.
       O vento bateu-me na cara e pus-me a imaginar ideias absurdas sobre formas de extermínio. Atrás de mim, atravessando frinchas e janelas mal fechadas, o Memorial de Michael Nyman recomeçava a sua marcha embriagadora.










4

       O barco atracou, como sempre, após várias tentativas desleixadas do comandante de bordo, para amainar a força brutal da besta de guerra.
       Alguns passageiros, mais absortos em conseguirem um primeiro lugar à saída, do que na distracção da paisagem corrosiva que se lhes apresentava, cambalearam, qual bêbedos engripados, num rodopio bestial de um lado ao outro. Ouviram-se algumas gargalhadas e logo um estalo esganiçado ecoou pela embarcação. Finalmente as cercas que prendiam aquele gado seboso abriam-se. Uma debandada feroz de ciganos irrompeu aos berros, enquanto um puto pequerrucho, a chupar num dedo quase esfarelado, observava, assustado, aquela histeria hipócrita dos adultos.
       Por fim, quando o gado se afastava já a uma distância razoável, pude, com um esfuziante sorriso despropositado, sentir de novo o vento bater-me na cara. Algumas gotas expurgantes pingaram-me o rosto gelado e um arrepio constrangedor dançou-me pelas vértebras abaixo. Estava a precisar de uma bebida. Algo mesmo forte. Um Vodka, talvêz.
       Enquanto atravessava o cais do Gingal numa preguiça descomunal, bocejando e perscrutando gargalhadas que se perdiam atrás de mim, pensamentos audaciosos devastavam-me o cérebro, como picadas súbtis de agulhas de acumpuctura.
       Eram ideias descabidas de lucidez, onde perpetuava o rosto engelhado da minha mãe, quase sempre a olhar para o infinito, num calmo e conturbado esgar de louca. Depois, como num sopro, a sua imagem desvanecia-se e surgía a silhueta imponente de Xavier, a fumar o seu cigarro de haxixe. Não dizia nada, limitava-se a estar ali, a observar-me, como uma sombra encolerizada.
       Levei um cigarro aos lábios quando avistei o bar. Recostei-me às paredes de um armazém abandonado e inclinei-me sobre o isqueiro. Uma chama vacilou por momentos acabando, de seguida, por se esvair num sopro violento. Uma nova chama estalou e o cigarro incendiou-se num galope. Inspirei o fumo e continuei a caminhada sonolenta até ao esqueleto recatado da minha embriaguêz.
       O meu espirito, entretanto, havia já perdido o fio daquelas visões quando encontrei a porta do bar. Empurrei a porta mas esta não se abríu. Bati incansavelmente na porta e algumas lascas de madeira começaram a soltar-se. Berrei para que me abrissem a maldita porta mas, um infindável silêncio intransponível crescia ao meu redor. Só o ruído fraco das vagas embatiam contra o pontão.
       Foda-se! Gritei disparatadamente quando me recostei contra a porta quase desfeita. E logo agora que precisava de uma bebida.
       Lancei um longo bafo e fiquei a observar a mancha ferrugenta que atracava no cais de Cacilhas. Uma série de indíviduos inundou o cais numa procissão desvairada e, logo depois, uma outra vaga de gente avançou violentamente para o mesmo barco. Aquelas constantes chegadas e partidas punham-me doido.
       Entretanto e, quando o cigarro se esvaía discretamente num retalho de mortalha e restos de tabaco queimado, um disparo presciente invadíu-me o espirito: e se Xavier estivesse simplesmente a comprometer a minha vida? Como? Uma armadilha! Seria possível que Xavier tivesse pensado em tal monstruosidade?
       E afinal quem era Xavier, se não um velhaco de pedagogias baratas, habituado a controlar a vida dos outros; um cabrão que predestinava destinos a troco de uma valente pipa de massa. Um filho da puta que agora exigia o homicídio da minha pobre mãe – velha histérica adicta da morfina. Era uma história precária aquela.
       Depois, quando o céu era já um manto negro de irregularidades deixei de pensar em todos aqueles disparates. Sim, Xavier tinha razão: a velha tinha que morrer. E se os meus pensamentos fossem verídicos, Xavier, tambem ele, iria dar o peido mestre.










5

       Não ouvi o martelar brusco da TV quando abri a porta. Tambem não ouvi nenhuma voz a tagarelar inconscientemente ao acaso, mas sabia que ela estava ali.
       Ao entrar na sala o seu olhar não se desviou. Tinha as duas azeitonas pretas dos olhos cravados no ecran desligado da TV. Um sorriso insólito desprendia-se-lhe dos cantos engelhados da boca. Estava recostada no sofá e uma manta preta cobria o que lhe restava das pernas. Os dedos, trémulos e muito gastos, premiam constantemente os botões do telecomando, enquanto os olhos, absortos no infinito, se deliciavam com as imagens inventadas que saíam da TV morta.
       Fiquei, por momentos, sem saber o que fazer: se havia de virar costas e afundar-me nas coxas de uma puta qualquer ou puxar o gatilho do revólver que tinha no bolso.
       Entretanto, quando o vento parecia querer quebrar as vidraças, recordei-me de coisas à muito esquecidas. Eram sonhos que regressavam agora como se fossem um assombro tremendo: vía-me como um míudo tolo a trespassar os céus, montado no meu anjo da guarda e tudo à minha volta não passava de meras coisas insignificantes. As casas, as pessoas, os animais eram como se não existissem, eram como se não fizessem parte da realidade. Só o céu existia como fronteira da nossa presença. Minha e do meu anjo da guarda de penas imaculadamente brancas.
       Depois o sonho tornou-se incongruente. O anjo começou a perder altitude e as penas que lhe cobriam todo o dorso, tornaram-se incrivelmente da cor do sangue. O anjo começou a ganir de sofrimento enquanto as asas pareciam agora descontroladas. Tambem gritei quando me apercebi que era do meu peito que o sangue jorrava. E lá em baixo, de braços estendidos, como um espantalho esventrado, a Morte esperava-nos ansiosa.
       Foi quando uma rajada mais forte embateu nas vidraças que acordei. O anjo havia desaparecido e o rosto indefinido da Morte já não esperava por mim. Do meu peito, o sangue havia tambem cessado de jorrar.
       Ergui então o revólver e fiz pontaria ao esqueleto cirroso da minha mãe. Um som estrondoso ecoou pela sala quando premi o gatilho. O corpo da velha caíu no chão com um baque sólido e um rio de sangue começou a formar-se ao redor do coração.
       E nesse momento, quando as minhas mãos começavam a tremer, o vulto do carrasco de óculos escuros penetrou na sala. Olhou-me de soslaio e retirou um machado do interior de uma sacola verde escura. Ajoelhou-se ao lado da cabeça da velha e antes de desferir o golpe sacrílego, sorríu-me uns dentes amarelos. Depois, um jacto de sangue espalhou-se à minha volta. Nem uma ponta de ressentimento brotou do meu coração quando o carrasco ergueu a cabeça decepada.
       Eu sabia que algo em mim havia sido libertado. Algo que se encontrava perdido entre sentimentos estúpidos e choros infantis. Uma espécie de besta rompera, por fim, o casulo do seu refúgio e começava a esculpir obras diabólicas.
       Não senti vómitos nem qualquer sensação de náusea quando uma segunda bala desfêz, num instante, os miolos do carrasco.










6

       Estavamos sentados de frente um para o outro. Eu, afundado no sofá vermelho, perscrutava em silêncio, as linhas do rosto de Xavier. Este, de olhar esgazeado, parecia adormecido de encontro à parede onde jazia o óleo de Salvador Dali.
       – Era suposto o Rui vir comigo, Xavier? – Inquiri, num tom carrancudo.
       – Era! O gajo devia ter vindo contigo, caramba!
       – Sabes que não gosto da companhia dele, Xavier.
       – Eu sei, porra!
       – Então porque o mandaste atrás de mim?
       – Ora, era necessário. Mas porque raio estás a falar desse modo? Que foi...
       – Não fiz nada, Xavier – Interrompi-o, sacudindo um pequeno montículo de pó que se havia formado na ganga consumida das minhas calças. – Onde estão os outros dos teus gorilas?
       – Porquê?
       – Nada.
       Xavier tentou erguer-se com a ajuda das mãos mas as pernas cederam e, por um momentâneo segundo, pareceu-me que todo o seu corpo se desintegraria se, na verdade, o conforto daquela parede não existisse.
       – Ajuda-me, Paulo – Pedíu, aflito. – Estou doente...
       – Pelo que percebo, nem a puta das pernas aguentas.
       O homem olhou-me com desprezo e retirou um charro do bolso da camisa. Colocou o retalho amorfo entre os lábios e a chama de um fósforo tremeu de convulsão. O homem inspirou profundamente. Momentos depois, o azul matizado do fumo que se libertava das suas narinas, lembrou-me o nevoeiro denso do Tejo nas manhãs frias de inverno.
       – A minha parte do acordo já está cumprida, Xavier.
       – Acordo? Que acordo? Não me lembro de acordo nenhum.
       Nesse instante, quando o homem começava a tossir convulsivamente, como um moribundo enlameado no escarro do seu próprio vómito, o corpo do pequeno revólver surgíu nas minhas mãos. O revólver, pesado e ferrugento, parecia ainda fumegar o beijo que libertara a minha mãe do inferno.
       – É verdade, Xavier. Nunca houve acordo nenhum.
       O homem empalideceu de repente e os olhos, esbugalhados de medo, enfrentaram a negridão do cano do revólver.
       – É a míuda que queres? Podes levá-la. Os clientes não param de fazer queixa dessa cabra de merda. Já não preciso dela, podes levá-la!
       – É a ti que eu quero, parvalhão, e não à Ana Carla. Deixá-la roçar a cona nos hipócritas dos teus clientes.
       Naquele momento vi-me como um cowboy solitário num duelo ao pôr do sol, com as botas a apertarem-me os calcanhares e o chapéu a cobrir-me o rosto de sombras frias.
       – Tu não me podes matar, Paulo.
       – Porque deixaste de repente de me tratar por puto?
       O homem não respondeu e uma primeira bala estilhaçou o vidro do óleo. Algumas lâminas de vidro ressaltaram para a guedelha de Xavier e, este, acotovelando-se de encontro à parede, começou a chorar de horror.
       – Pareces um filho da puta efeminado, Xavier. Não sabia que os homens de ideais tinham receio da morte.
       Uma segunda bala zuniu desgrenhadamente no seu ouvido direito, embatendo violentamente na tinta branca da parede. O homem gritou e uma palidez quase cadavérica assolou-lhe as faces.
       – Detesto ver homens a chorar, Xavier. Diz-me que não estás a chorar. Vá, diz!
       E muito antes que o homem pudesse mover os lábios e articular palavras que não queria ouvir, uma terceira bala escapulíu-se do cano negro do revólver. E muito antes que o homem pudesse alcançar a mão de Deus, uma impetuosa garra de pólvora crivava-se-lhe na testa desprotegida. Um fio de sangue irrompeu apressado do buraco da testa. E como as lesmas que se arrastam com sofreguidão, o sangue escorregou pelo cano do nariz abaixo até atingir a imperfeição do soalho estragado.
       Ergui-me do sofá vermelho e caminhei até ao cadáver do homem. Apanhei o charro esquecido junto à parede e coloquei-o entre os lábios. E enquanto regressava à estabilidade do sofá vermelho, um aroma adocicado ficou a pairar nas paredes viscosas da minha boca.
       Descansei o revólver no colo e fiquei, maravilhado, a escutar os tossidos roucos que o homem já não fazía.

Cova da Piedade
Novembro
1993

05. os inquietos










Prólogo
                                                                   
       O homem levou as mãos aos olhos para enxaguar as lágrimas que lhe escorriam pela face abaixo e ficou parado, atento à ressonância apressada das válvulas estragadas do coração. Era como se uma grande onda de sangue quente, a pulular frenéticamente nas veias, lhe invadisse os lábios e a garganta, num aperto rumorejante sem voz.
       Depois, com os dedos a gaguejarem passos de senilidade, ia procurando nos diminutos bolsos do sobretudo, reduzidas migalhas de pão, esquecidas entre os escarros das noites que o álcool gritava. Quando levou as migalhas à boca, não se importando mais com as lágrimas, reparou na pele grisalha dos dedos e odiou-se por ser aquilo que era – o retrato sôfrego dum corpo ferrugento, já quase sem sonhos.
       E nesse momento, enquanto as amostras dos dentes mascavam, na passividade lasciva dum beijo, os pedaços de pão, o seu olhar deambulou de pedestre em pedestre, como se estivesse à procura do rosto íntimo dos conter-      râneos da embriaguez. E lembrou-se da taberna onde todas as noites despejava o vómito fluorescente da digestão. Lembrou-se do comparsa de sotaque algarvío, de copo em punho, a torcer a cabeça na direcção do pequeno aparelho de televisão, numa prateleira junto ao tecto, onde as moscas repousavam o peso das asas dilaceradas.
       – Olá, fofo – Disse uma inesperada voz.
       O homem voltou a cabeça e ficou em silêncio, a fitar a mulher com o desprezo majestático de burguês.
       – Está à espera de alguém?
       Como o homem não respondeu, a mulher acrescentou baixinho, no tom de quem confessa um qualquer desejo:
       – Se precisar de mim, sabe onde encontrar-me.
       Depois afastou-se, envolta na melodia trémula de gargalhadas irrequietas. O homem estrebuchou algumas asneiras ao reparar no olhar de rebuçado peganhento da mulher.
       E quando procurava nos bolsos remendados das calças a sobra de um cigarro, uma voz rouca de mulher ecoou pela estação avisando o atraso do comboio que vinha de Campanhã.
       Quando levou a beata aos lábios engelhados, reparou numa rapariga vesga idêntica a um pardal com cio, a segredar gargalhadas saltitantes a um quadragenário encurvado em concha.
       Malditas putas, pensou o homem ao discernir os berros de excitação do velho, cada vez que a rapariga lhe acariciava o volume embrulhado do pénis extinto.
       O homem recostou-se melhor no banco de madeira e acendeu a beata que jazia na concha dos lábios. Meteu as mãos nos bolsos do sobretudo e fechou os olhos, distinguindo a sombra inquieta do cadáver da esposa, a sorrir-lhe brilhos melancólicos de rosácea, algures numa sepultura de mármore quebrado.










1

       Quando entrou no bar uma luz de um vermelho berrante atingíu-lhe a cara, revelando os vincos das cicatrizes. Uma mulher gorda pousou-lhe no braço as unhas compridíssimas e os seus olhos de abutre fixaram-no na intensidade postiça do rímel, sob umas sobrancelhas depiladas.
       O olhar do homem trepou para o peito da mulher, que subia e descia numa cadência de guelra e afastou-se, enojado com a quantidade do baton que naufragava nos seus lábios viscosos.
       Ao alcançar o balcão solicitou uma cerveja e prolongou o olhar pelos bancos vazios, como se procurasse alguém. Sabia que a esposa costumava frequentar aquele bar e, antes que as pupilas se habituassem à semi-escuridade, distinguíu, numa bruma de trevas, brilhos vagos de candeeiros e reflexos de garrafas, a postura incólume do seu corpo.
       – Você tem mesmo a certeza de que é médico? – Perguntou-lhe um rapaz negro, agarrado a uma loira de mamilos retesados, a gritarem tolices no decote sufocante do soutien.
       O homem olhou-o com desconfiança os jeans rapados, a camisola gasta, a desordem descuidada dos cabelos e afastou-se sem dizer nada, com o copo suspenso pelos dedos. Ao alcançar uma mesa ocupada por uma mulher de caracóis bem penteados, sentou-se numa cadeira abandonada e ficou em silêncio, a admirar as pétalas rosáceas da cabeleira postiça da esposa, a desabarem pela carne nua dos ombros bronzeados. Das nádegas das orelhas oscilavam duas bugigangas estrambólicas que perdiam a graça ao contacto com os raios abrilhantados de luz. De vez em quando vascolejava as mãos no ar, onde grandes fios brilhantes se desprendiam dos pulsos e lançava gritinhos histéricos de adolescente, como que embriagada pela cadência ritual da musica que, num alvoroço estonteante, massacrava as cavidades estéries dos ouvidos.
       Quando o homem levou o copo aos lábios secos, o que parecia ser um cavalheiro de fato e gravata, acercou-se da sua esposa e beijou-a ao de leve na boca. Depois envolveu-a com os braços e murmurou-lhe ao ouvido, algumas lábias desconcertantes que a fizeram contorcer-se de gozo.
       O homem, de narinas muito abertas e de sorriso de desafio reteso nos lábios, batia as unhas no copo de cerveja em ritmo de tambor militar, enquanto que observava os gestos pomposos do cavalheiro, de corpo contraído, numa contínua exposição de sussurros eróticos.
       A esposa retirou uma boquilha de meio metro da carteira e levantou para o marido a pálpebra sonâmbula que se desviou de imediato para o cavalheiro, de isqueiro em punho, onde uma chama perturbante tremia de neura.
       O homem ergueu-se da mesa e ao cumprimentar a mulher dos caracóis, que não lhe deu atenção nenhuma, afastou-se em direcção à pista de dança, onde o corpo de rapariga de cabaret da esposa, bailava de encontro à erecção fraterna do cavalheiro.
       – Olá, Flora! – Inquiríu o homem, acariciando-lhe os cabelos negros.
       – Olá, João! – Disse a mulher, com uns olhos opacos como espelhos de obsidiana.
       – Preciso de falar contigo.
       – Só agora é que te lembras que existo, querido? Agora não posso.
       – Temos de falar, e depressa! – Disse o homem, agarrando-a pela aba do casaco vermelho-lavagante que morria ao nível da coxa.
       – O que tens na caixa dos pirolitos, pá? – Perguntou o cavalheiro, cravando-lhe os olhos nas cicatrizes.
       – Por favor, João, não faças cenas – Pedíu a mulher num tom de embaraço.
       – Diz a esse parvalhão para esperar um pouco – Grunhíu o homem, ao que se afastou, abrindo caminho com as mãos, através daquela vaga de sucessivos encontrões de corpos suados.
       Quando chegou ao bar estendeu uma nota e pedíu uma cerveja.
       – O que queres de mim, João? – Perguntou a mulher quando chegou.
       – Quero que abandones esta vida.
       – O quê que estás para aí a dizer?
       – Ouviste perfeitamente, Flora. Já estou farto disto tudo.
       – O quê? – Inquiríu ela, agitando as mãos. – Com que então estás farto? E eu, meu cabrão? E eu? Como pensas que me sinto?
       – Inquieta para ir para a cama com aquele gajo.
       – Não passas dum merdas, João – Disse a mulher, de lágrimas nos olhos. – Pára com isso, que dás cabo do rímel – Sossegou-a, acabando de bebericar a cerveja.
       – Porque me estás a fazer isto, João?
       – Já te disse. Não quero continuar a viver contigo, sabendo que existem outros gajos a lambuzarem-se na minha mulher.
       – És mesmo grosseiro, sabías?
       E antes de se afastar para a rua, acrescentou baixinho com a doçura de uma lembrança grata:
       – Encontramo-nos em casa.
       Antes da sua postura de anjo maldito desaparecer na multidão, veio-lhe à ideia a última vez que se haviam amado, estendidos lado a lado no colchão, entre corajosas carícias de atrevimento que os corpos iam descobrindo, beijo após beijo. E lembrou-se que adormecera liquefeito, sem dizer que a amava.









2

       Ao chegar a casa, o homem sentou-se nos degraus de pedra e ficou em silêncio, com a cabeça metida entre as pernas, a pensar como era um imbecil. Havia já largos meses que Flora roçava o umbigo nas grosseiras bocas de maridos humilhados, vendendo cochichos de afecto, no estrépito agudo do colchão. No entanto, lembrou-se o homem, há já largos meses que tambem ela consentia o odor petulante de outra mulher na sua cama, a exibir os lábios manchados de esperma, entre gritinhos ofegantes de corpo suado, a passear as pregas das mamas na suavidade terna dos lençóis.
       Nesse momento a porta abríu-se com estrondo e o homem torceu a cabeça. Na soleira da porta estava uma loira de seios grandes que lhe sorríu com descaro. Ela pestanejou frenéticamente e retirou um Camel de contrabando de uma horrorosa bolsa de cartão.
        Que estás aqui a fazer? – Inquiríu, erguendo-se.
       A rapariga sorríu. Observou-o com um riso irónico que pregueava a sua cara estreita e manchada de sardas.
       – Como conseguiste entrar?
       – Com a chave que me deste. Já não te lembras?
       – Desculpa – Anuíu, numa imitação de sorriso.
       A rapariga tornou a sorrir e acendeu a ponta do cigarro com um isqueiro de baquelite. As unhas, de um verniz impecável, brilharam com a abrupta intensidade da chama.
       – Sinto muito, minha querida, mas hoje não posso. Perdoa-me.
       A rapariga baixou os olhos e franzíu a testa, num suspiro de impaciência.
       – Ouve, Marta...
       – É por causa dela, não é, João?
       O homem entrou em casa sem dizer água vai água vem e aproximou-se do quarto. Esfregou as mãos na cara e o corpo tombou com cansaço e desapontamento nos lençóis desfeitos.
       – Queres mesmo que me vá embora? – Quis saber a rapariga, encostada à porta do quarto.
       João ergueu as pestanas e olhou-a com um sorriso agradável. Depois cravou as pupilas nas linhas delicadas das pernas da rapariga e imaginou as constelações que poderia alcançar naquele ventre de seda.
       – É melhor partires, Marta – Disse, deliciado com o tom dourado do rosto da rapariga.
       – Porque não a deixas, João? Podíamos ser felizes os dois.
       – Deixa-te disso, Marta. Não passas duma fantasista mimada, míuda.
       – É só para isso que me queres?
       O homem deitou-se e ficou a alisar com as pontas dos dedos, a maciez  tenra dos lençóis.
       – É só para isso que tu serves! – Disse, dando gargalhadas bem dispostas.
       A rapariga sentíu um ardor na garganta e algumas lágrimas se espalharam pelo dourado rosto abatido. E enquanto as lágrimas ecoavam gritos abafados de dor, em carícias tresloucadas pela face abaixo, o homem ficou de olhos fechados, tenso, a lembrar-se do cheiro aromático de Flora, cada vez que ela flutuava o peso desmedido do corpo na volúpia esquentada do seu pénis inconstante. E recordou-se daquele momento em que uma vaga estoira de súbito numa explosão de espuma do tamanho do mundo, onde as bofetadas dos gritos de prazer os despedaçavam para cada canto do lençól, numa moleza de náufrago.
       E ao abrir os olhos, em vez de encontrar o Camel a dançar nos lábios da amante, deu de caras com o contorno voluptuoso dos seios de Flora, a sufocarem numa camisola muito justa. 









3

       Flora voltou-se e olhou na direcção da janela envolvida em nevoeiro.
       – O teu casaco?
       – Acabei de ver a tua amantezinha – Disse a mulher, num riso pouco à vontade.
       O homem, agarrado aos lençóis, vasculhava, apreensivo, com olhares pouco discretos o contorno fogoso dos mamilos da mulher, a sorrirem expressões conquistadoras, na transparência irreverente da camisola. Ela retirou um cigarro da carteira e colocou-o entre os lábios. Uma chama estremeceu e um aroma a mentol ficou a pairar no quarto. Ela lançou uma longa baforada de fumo para o ar, aproximou-se e disse-lhe, olhos nos olhos:
       – Andei a fazer um trabalhinho.
       – Acho que a nossa vida devia tomar um novo rumo – Disse o homem.
       – Agora é tarde demais.
       – Detesto as idiotices que fazes com esses cabrões que te assediam.
       – Não sejas infantil, João.
       – Pára com isso, caraças! – Gritou, agarrando-a pelos ombros. As mãos, no entanto, escorregaram-lhe pelo tecido sedoso da camisola.
       – Não há nada como continuarmos assim, João.
       – Tu estás-te a matar!
       – Mas isto tudo é por causa da merda do casaco? – Irritada, aproximou-se da janela.
       – Sabes o que aquele casaco significa para mim, Flora?
       – Não me interessa – Disse, enfrentando-o. – Com o passar do tempo fui-me habituando a viver com os meus amantes. Já não sinto nada por ti, é como se nem existisses sequer.
       – Isso não é verdade!
       – Verdade é que não me lembro de alguma vez teres agradecido o dinheiro que costumo trazer para casa. Até a putazinha da tua amante já come à minha custa.
       – És mesmo cretina.
       Nisto, ele aproximou-se da mulher e, agarrando-lhe o braço com violência, puxou-lhe a manga da camisola, ficando estúpidamente a olhar para as marcas patéticas nas veias, na civilizada pose de quem reprova a vulgaridade de um filme pós-modernista.
       – Agora percebes que não é por causa dos testículos dos meus amantes que ando a fazer trabalhinhos à parte – Disse, esmagando a beata debaixo do tacão gasto e, ajeitando a camisola ao volume das mamas, afastou-se em passos apressados de menina desverginada.
       Antes de transpor o limiar da porta do quarto, olhou uma última vez para a sombra estática de João, ainda intimidado pelo pulsar ofegante das suas veias esverdeadas, a estrebucharem o calor meigo duma agulha turbulenta.
       Depois, em gestos cuidados de bordadeira, compôs as extremidades da cabeleira postiça e desapareceu na certeza irrevogável de que nunca mais seria sensata, nem mesmo para consigo.










4

       Com o passar das horas, os miolos de João pareciam-se mais com uma torrente pálida de expectoração, numa amálgama espavorida de pensamentos odiosos, a vogarem no hálito fétido dos alcoólicos. Cada vez que o ardor electrizante do Whisky se precipitava pela garganta abaixo, uma apatia desmesuradamente profunda ressequia-lhe os ossos cansados do corpo, numa intensa viagem ao alabastro da sua sepultura. Vía-se como um corpo repulsivo, a apodrecer os restos dos intestinos no regozijo alucinante da bebida, às portas do cemitério, saudavelmente consumido pelo olhar do coveiro armadilhado pela mão de Deus.
       Quando sorveu o que restava do copo sabía-se embriagado e foi massacrado pelas palavras de Flora que afluiam irrisóriamente no cérebro, como se fossem um castigo qualquer. E então lembrou-se das marcas no braço da mulher, adormecidas num embalo apaixonante, onde já os seus lábios não moravam e onde a sua língua já tinha receio de rastejar.
       Não se importava mais que ela lhe pusesse os cornos, é verdade, como tambem não se importava mais que ela se apaixonasse por um velho qualquer cheio de massa, afinal, ela era uma prostituta, mas, contudo, sabía-se humilhado.
       Pedíu outro Whisky e ficou quieto, com um olhar de carneiro mal parido a observar a ruidosa multidão na pista de dança, a sacudirem os membros na cadência avassaladora daquela musica de merda. Depois virou-se para enfrentar a expressão apática do barman, de olhos quase fechados, a segurar com uns dedos trémulos, o cristal falso dum copo partido. Estendeu uma nota sobre a gordura do balcão e voltou de novo a atenção para o emarenhado de corpos esmagados, a cambalearem passos teimosos de bailarinos castrados.
       E nesse momento, quando terminava a bebida, a face estreita e manchada de sardas de Marta surgíu-lhe à frente, envolta num sorriso largo, onde os dentes brancos sobressaíam no vermelho luzídio dos lábios manchados.
       – Ainda bem que estás aqui, Marta.
       – O que foi?
       – Preciso de sair daqui e quero que venhas comigo.
       – Agora não posso, João. Estou com um amigo cheio de massa.
       – Que se foda esse gajo, caramba! – Bradou, irritado.
       Os seios da rapariga remexeram-se com irreverência por detrás do tecido da camisa e ela sentíu-se ultrajada com o olhar transfigurado que o homem lhe lançou.
       – O que se passa contigo, João?
       – É a merda da bebida que me põe assim – Desculpou-se.
       Marta retirou um Camel da horrorosa bolsa de cartão e prendeu-o nos lábios trémulos do homem.
       – Não quero isto para nada! – Disse, esmagando o corpo sem vigor do                  cigarro de encontro ao balcão do bar. – O que eu quero é sair daqui contigo, ouviste?
       Ela consentíu colocando um braço à volta da cintura do homem. Até ela chegou o odor nauseabundo do Whisky misturado com o calor afrodisíaco do tabaco.
       Quando transpuseram a porta do bar, partículas de poeira dançavam nos raios de luz matinal.









5

       Marta beijou-o ao de leve nos lábios e percorreu com o cabelo, o peito nu de João, na postura aguerrida de quem fareja o sangue fresco de um morto. Depois deixou-se cair ao seu lado, na desarrumação odorífera dos lençóis. Encostou a cabeça ao ombro do homem e pôs-se a brincar com os pêlos eriçados do peito, lançando risinhos estridentes de rabina.
       – Porque estás tão macambúzio, João? – Inquiríu, beijando-o nos mamilos.
       – Aquela gaja dá-me cabo do juízo, Marta. Agora até vende o corpo por causa da merda da droga.
       Marta ergueu-se e ficou em silêncio a observar a formação das lágrimas nos olhos do homem.
       – Ainda a amas?
       – Desculpa aquilo que disse sobre...
       – Eu sei que só sirvo para isso – Interrompeu-o, colocando as nádegas em cima do estômago do homem.
       – Não precisas de fazer isto, Marta.
       – Eu quero fazer isto – Sossegou-o, beijando-lhe o ventre descarnado de qualquer pudor.
       E naquele momento, quando as línguas trocavam apertos histéricos de carícias, Marta desembaraçou-se do lençol que cobría o pénis do homem e sentíu-se esvair, quando a carne elegante do ânus engolíu sem demoras, a erupção dolorosa daquele corpo ordinário.
       E ficaram assim, enroscados como duas crianças mimadas, agarrados à carne encharcada dos sexos desventrados, a morrerem de exaustão numa cama que já conhecera o íntimo de cadáveres sem fim, num desfile fabuloso de bocas em alvoroço, despedaçando ventres e nádegas, despedaçando a gaguez de múltiplas ejaculações.
       – Não me deixes, João – Segredou-lhe ao ouvido.
       O homem não respondeu. Ficou de olhos fechados, a saborear as proporções desmesuradas daquele orgasmo, como que devassado por um vício incorpóreo.
       O corpo da rapariga estremeceu ao ouvir a porta da rua abrir-se com violência. Nessa altura as pupilas do homem tomaram vida e discerníu os seios grandes da rapariga, muito quietos, empedernidos num corpo humedecido que tremia como uma castanhola.
       Na soleira da porta do quarto, Flora observava-os com umas olheiras vincadas por cansaço. Dos lábios pendia uma mancha seca de sangue e nos olhos opacos havia um rasto de lágrimas, a resvalarem no rouge desfeito da face.
       João olhou para Marta, ainda escarranchada no seu ventre, a roer as unhas de irritabilidade. Depois olhou de novo para Flora: o casaco vermelho-lavagante pesava-lhe nos ombros.
       João libertou-se do peso agradável das ancas da rapariga e aproximou-se de Flora, com a carne gasta do pénis a balouçar restos de um festim herege. Agarrou nas calças que jaziam no chão e vestíu-as com atrapalhação. Depois abraçou-se a Flora que respirava com dificuldade e, ficaram, quietos a remoerem na cabeça as memórias mutiladas pelo jejum estúpido de beijos esquecidos.










6

       O homem desviou o olhar para a janela e pôs-se a contemplar as rugas fundas do trabalhador da câmara que, na passividade arrogante dos velhos enfermos, limpava a rua com uma vassoura comprida de pêlos gastos. Atrás dele, na capelista em cuja montra se empilhava toda a espécie de bugigangas, uma mulher idosa, com umas enormes crostas nas pernas, regateava o custo exorbitante que lhe pediam pela imagem mutilada de um santo esverdeado.
       O homem ouvíu a respiração cansada de Flora ecoar pelo quarto, como que a rastejar timidamente pelos lençóis, num corpo sem firmeza e voltou-se. Foi com insatisfação que as suas pupilas húmidas discerniram as marcas engelhadas nos braços cinzentos da esposa. A face, sem cor, era agora o reflexo brando de um fantasma cadavérico, onde só as sombras das olheiras pareciam estar vivas.
       O homem aproximou-se da cama e pegando-lhe na mão, estremeceu ao contacto frio daqueles dedos muito brancos. Algumas palavras lamuriosas fugiram-lhe da boca e soaram com inútil saudade, quando os dentes envolveram a carne nostálgica daqueles lábios engelhados, quase mortos.
       O homem, de lágrimas nos olhos, ajeitou as dobras do lençol e saíu do quarto, levando consigo o coração dorido.
       Marta estava sentada numa cadeira de madeira, a observar o tom claro das pernas, na petulância vaidosa das meninas de Carcavelos, a derreterem a celulite das ancas na ânsia neurótica dos beijos salgados dos surfistas.
       O homem sentou-se a seu lado, a fungar palavras indicifráveis, como na cantaria desconexa dos loucos embriagados. Depois, olhando-a bem fundo nos olhos, agarrou-se às pernas da rapariga e apertou-as contra si, num abraço de desmedida perturbação.
       – Ela está a morrer, Marta.
       A rapariga acariciou-lhe o volume macio do cabelo e ficou a lamentar-se por ser uma idiota, uma filha da puta idiota.
       – É bom saber que estás aqui comigo – Disse João, beijando-a na rótula do joelho.
       – Tenho que me ir embora, João – Disse a rapariga, ao soltar-se dos dedos pesados do homem, que se agarravam de constrangimento às suas pernas.
       – Porquê?
       – Agora já tens a tua mulher, querido – Disse, lançando-lhe um olhar enfadado.
       – Não me deixes, Marta. Eu preciso de ti.
       – Não creio. Se precisasses de mim não tinhas casado com essa megera.
       Quando abríu a porta, o Sol penetrou-lhe com violência nos ossos ressequidos. Antes de desaparecer na claridade ofuscante do dia, beijou-o nos lábios e compondo o decote largo da camisa, disse:
       – Bebe uns copos e esquece que existo.
       O homem ficou quieto, a observar os gestos descuidados do rabo de Marta, suspenso nas palavras ainda a vogarem reboliços de incompreensão nos miolos confusos da sua cabeça. Só quando a silhueta da rapariga desapareceu no intrigante marasmo da multidão, João, na compreensão já tardia daquelas palavras malditas, sentíu-se esvair.










7

       Ao abrir os olhos, Marta distinguíu o sorriso amarelo de uns dentes deploráveis, a reluzirem na cara gorda de um homem. Ela ajeitou o corpo na concha quente da cama e ficou a observar os olhos ordinários daquele homem que a fixava com desdém.
       – Bem que podias ter feito melhor, míuda – Disse o homem, correndo o fecho da braguilha.
       Depois, num gesto preguiçoso, deixou cair uma nota em cima dos seios nus da rapariga e, antes de sair, ficou a assobiar recordações tenras de pêlos fulvos na desordem orgulhosa que sobre a cama flutuava.
       Quando o homem abandonou o quarto, deixando um rasto horrendo a tabaco rançoso e a carne assada humana, o telefone acordou, disparatando ruídos grosseiros de vândalos histéricos.
       – Ainda bem que estás em casa, Marta – Era a voz de João. Aquela mesma voz perturbada que tanto amava. -- Não sei o que fazer. Ajuda-me.
       – Porque será que ninguém dá ouvidos àquilo que digo?
       – Por favor, Marta...
       – Porque não a deixas, João? Ela tem montes de homens que davam tudo para estar com ela...
       – Não recomeces, querida.
       – Deixa-te de merdas, João – Interrompeu-o, num tom mais agressivo. – Sabes perfeitamente que ela não te ama, João.
       Por momentos, a voz ofegante de João pareceu desaparecer e um silêncio quase fúnebre, se abismou entre eles.
       – Marta?
       – Estou aqui – Respondeu, aborrecida.
       – Ela quer deixar-me...
       – Porreiro – Gracejou, vestindo as calcinhas brancas, esquecidas na concavidade das almofadas conspurcadas de suor.
       – Isto é muito sério, Marta. Ela quer deixar-me para morrer sozinha. Ouviste?
       – Não sou surda, bolas!
       – Já pensaste bem o que ela quer fazer?
       – Patético, não é?
       – Por favor, Marta, não brinques.
       – Para ser franca, João, estou-me cagando para o que possa acontecer a essa putéfia de merda.
       E nessa altura, a voz coagulada de discernimento do homem desapareceu por completo, embriagada pelo lastimável consolo que aquelas palavras haviam incitado. Marta ainda procurou, no íntimo do coração, ouvir a respiração repreensível do homem que amava. Mas apenas o silêncio lhe penetrava na carne inconsciente do ouvido que, adormecido, fantasiava caprichos eloquentes de longos orgasmos.
       Marta sentou-se na cama desfeita, onde o fantasma do seu sexo ainda respirava de cansaço e, pôs-se a recordar o dia em que João oferecera o casaco vermelho-lavagante à puta da mulher. Ela, de boca aberta, a sorrir de contentamento, enquanto o marido disparava lábias agradáveis de apaixonado, sem dar importância à sua presença, sem dar importância ao odor incomodativo do tabaco de contrabando, a revolver aneis de fumo nos intervalos das bátegas abundantes da chuva.
       És mesmo uma parva, pensou a rapariga, encontrando a forma esquartejada do soutien, esquecido na confusão erecta de vibradores e cintos de ligas vermelhas.
       Quando o reflexo semi-nu do seu corpo surgíu no espelho, de cabelos loiros despenteados e de sardas a sorrirem a vergonha dos lábios pintados, ficou imóvel, sem pestanejar, a observar a dança nervosa dos seios, a vomitarem largos jactos de leite através das rendas sufocantes do soutien. Depois desceu o olhar para o peito denso da vagina e ficou a observar a sombra exuberante daquele triângulo de pêlos fulvos, como que a suplicarem caprichos de gozo.
       Quando tornou a erguer os olhos, algumas lágrimas brilhavam de insatisfação na cara estreita. E ao enfrentar a cama, onde os lençóis lutavam por desejos concupiscentes, discerníu o rosto de João que largava um pus fedorento das bocas das cicatrizes. No meio das pernas apareceu o vulto edificado de um corpo descarnado, a sorrir-lhe vontades apressadas, como os guinchos encantados dos vermes do restolho, a morrerem no sossego lírico das horas.
       Ela lançou um sorriso lisonjeiro ao perceber que aquela imagem não passava de um logro, de um maldito logro que a sua cabeça inventava. E todo o seu corpo estremeceu, quando os pêlos húmidos do sexo se enrodilharam nas pregas das calcinhas e ela imaginou, sem receio, a satisfação que poderia alcançar ao copular aquele pénis vermelhão, onde um rasto de suor, exibia a saliência das veias retesadas.
       Marta deixou-se cair no chão e ficou a pensar, com a cabeça metida no intervalo das pernas, no desassossego que teria se, o homem que amava, tambem ele mergulhasse nas chamas do Purgatório – onde os anjos incitam bondades calejadas e onde os demónios contorcem as bocas desdentadas, na ânsia de trincarem os sexos alucinogéneos dos homens.










8

       E Marta correu como uma louca, o rosto transfigurado de pensamentos suicidas, enquanto que os saltos altos massacravam, sem piedade, a carne flácida dos pés.
       E foi quando os tacões se quebraram de cansaço que, o corpo de Marta caíu no chão, enroscando as pernas nuas numa fedorenta poça de mijo, onde luzes de neon brilhavam de exuberância. Ela grunhíu uma asneira e descalçou os pedaços desfeitos dos sapatos. Depois pôs-se de pé e continuou a correr, completamente endiabrada pelos pensamentos que se acumulavam nas paredes do cérebro.
       E Marta sorríu quando o víu, agarrado ao espectro doentio de Flora, a aspirar a fragância do orvalho que começava a humedecer os corpos.
       – Obrigado por teres vindo – Agradeceu o homem, ao mesmo tempo que abría a porta do carro.
       – Aonde vais, João?
       – Dar uma volta – Respondeu, colocando o corpo esfarrapado da mulher no banco traseiro.
       – Deixa-me ir contigo, João.
       O homem entrou no carro e ficou a observar a ondulação do cabelo da amante e depois, ligando a ignição, confortou-a com um olhar alegre.
       – Não faças nenhuma asneira, João.
       – Vamos dar uma volta, míuda? – Convidou o homem, apercebendo-se do olhar assustado da loira, a remexer os seios no desconforto apertado do soutien.
       Foi Marta quem falou quando o motor do carro deixou de roncar:
       – Perdoa-me, João. Perdoa-me por ser uma parva.
       – Não digas isso – Disse o homem, acariciando-lhe a pele molhada da face.
       Até eles chegou o marulhar das ondas do mar e um odor salgado a peixe morto penetrou-lhes nas narinas, num rápido e sustentável arrepio de frio.
       – Porque viémos a este lugar?
       – Foi Flora quem me pedíu – Sussurrou o homem, quando respirou o aroma salobre do vento. Acariciou as cicatrizes da face e saíu para a rua. – Foi nesta mesma praia que lhe ofereci o casaco que traz vestido.
       Marta lembrou-se. Retorceu os músculos do pescoço e ficou a observar o sorriso sereno e calmo que pairava nos lábios de Flora. Dos ombros bronzeados desprendía-se a silhueta vistosa do casaco vermelho-lavagante, a morrer-lhe ao nível das coxas.
       – Como é que ela está? – Inquiríu a rapariga ao saír para a rua.
       O homem ajoelhou-se e ficou em silêncio, a adorar o reflexo pálido do rosto da sua querida esposa, embutido no vidro do carro. Dos olhos desabavam profundas olheiras e a pele da cara estava cinzenta. Os lábios, secos e sem vida, pareciam expelir a doçura alegre das crianças adormecidas, no conforto venenoso da vigília dos demónios.
       – Morta... – Murmurou, com dificuldade.
       Ao fundo, esquecido no nevoeiro, um navio assobiava de nervoso, através das vagas inconstantes do mar. Um pescador passou por eles a soletrar uma melodia brejeira, carregado com um tabuleiro malcheiroso, onde alguns peixes ainda vomitavam escarros de água. No olhar, a fúria incontida de ambições perdidas e desgostos segredados .
       E quando o camião do lixo atravessou o asfalto, num berreiro indecente, o homem abríu a porta do carro e, soluçando desculpas, removeu o peso caro do casaco vermelho-lavagante dos ombros da mulher e beijou-a, com intensidade, nas curvas geladas dos lábios mortos.









9

       Os brincos negros de Marta dançaram convulsivamente na ponta das orelhas, quando os dedos de João, a serpentearem ousadias, se enroscaram nos seus cabelos loiros.
       – Peço-te que fiques comigo – Implorou o homem.
       – Acho que o melhor para nós é afastarmo-nos para sempre. Quem sabe se não nos podemos encontrar um dia?
       O homem voltou-se e ficou a observar na passividade estúpida dos doentes, a cor esbatida das carruagens, perfiladas na confusão de maços de tabaco e restos de comida. Até eles chegou o silvo agudo de uma locomotiva trespassada pelos vincos da ferrugem e, nesse momento, víu-se como uma agulha da via férrea, mutilada pela constante perpassagem de longos corpos de ferro.
       Depois tornou a enfrentar as sardas que preenchiam a cara estreita da rapariga. Já não parecia a mesma puta que conhecera na intimidade dos lençóis, a enroscar o odor dos seios grandes na farra patética dos adolescentes virgens.
       – Estás muito bonita – Balbuciou, apreciando o minishort em cetim que lhe ajustava as ancas com firmeza. Uma camisola em jersey de riscas brancas e pretas revelava o contorno dos seios grandes e, umas luvas tambem em jersey, escondiam-lhe a beleza balofa das mãos.
       – Vou ter saudades tuas, João.
       – Tens a certeza de que é isto que queres?
       Marta pegou na mala que jazia junto aos seus pés e olhando as retinas calmas do homem que amava, respondeu-lhe com um sorriso meigo:
       – Tenho bastante lucidez naquilo que penso e faço, João.
       Depois afastou-se, levando consigo o aroma inolvidável do tabaco de contrabando, entranhado na carne espessa dos quadris desinibidos, a expelirem o cheiro prosaico do sangue dos mártires.
       E João ficou a vê-la – o coração a bater de remorso – desaparecer na confusão revoltosa da multidão, carregada de bagagens e de crianças histéricas, a sangrarem o humús dos sexos virgens na berraria selvagem das locomotivas enferrujadas.
       E quando a silhueta da locomotiva desapareceu do horizonte, na amálgama doçura de carris queimados, João ficou a recordar os olhos opacos da esposa, na inconfundível sobriedade de quem chora de saudade.










Posfácio

       O homem acordou ao contacto suave da brisa a massacrar-lhe o rosto gasto. Ao abrir os olhos, a silhueta fantástica de uma locomotiva ruidosa surgíu na auréola do horizonte, com o mesmo fascínio que os mágicos do circo iludem os sonhos das crianças.
       O homem ergueu-se com dificuldade e ficou a observar os rostos inanimados dos passageiros que, colados aos vidros das janelas, desfilavam sorrisos catastróficos de desinteresse por si. Remexeu os dedos no bolso interior do sobretudo e sorríu ao encontrar o resto de um retrato. Os olhos, quase sumidos pela porcaria, exibiam um brilho deslavado que flutuava de agonia, no marasmo quase patético de um rosto loiro.
       O homem beijou o retrato e guardou-o de novo no refúgio malcheiroso do sobretudo, esquecido em recordações já muito débeis.
       A locomotiva assobiou uma despedida apressada quando o último passageiro desceu da carruagem. E o homem, desesperado, procurava na confusão de vozes irrisórias e corpos suados, o fantasma esquecido do retrato.
       Pouco depois, a vaga ruidosa dos passageiros, a exalarem o odor dilacerante de aguardente e rapé barato, deixava para trás a sombra cambaleante do homem. E nessa altura, quando o cheiro do Camel de contrabando lhe entrou pelas narinas adentro, como uma estalada alegre, vislumbrou uma mulher, de cabelos loiros e manchada de sardas, a segurar a ponta de um cigarro carcomido. Os seus olhos resplandeciam de saudade.
       – Olá, João – Disse a mulher, num tom preguiçoso.
       – Como estás, Marta? – Inquiríu o homem, discernindo algumas rugas ao redor dos seus olhos e ao longo das bochechas.
       – Nunca pensei que atendesses ao meu telegrama – A boca de Marta abríu-se num largo sorriso.
       – Porquê?
       – Pensei que estivesses chateado comigo.
       – E estive – Respondeu, apreciando a horrorosa bolsa de cartão pendurada nos ombros engelhados da mulher.
       Marta já não tinha aquele sorriso de descaro nem o verniz das unhas brilhava com a mesma intensidade. Os dentes estavam amarelos e a carne flácida dos seios, enrolados no desencanto do soutien, pareciam mortos, pareciam não estrebuchar vontades devassas.
       – É bom voltar a ver-te depois destes anos todos, Marta.
       – Sei que continuas a viver sozinho... é uma pena.
       – Pois eu não acho, minha querida – Os olhos de João não segredavam nenhuma lágrima. – Nunca me esqueci das tuas últimas palavras. Limito-me a segui-las, mais nada. E aprendi a ter bastante lucidez naquilo que penso e faço.
       – Fico contente por saber isso.
       O homem pegou na mala da mulher e sairam para a claridade fria do dia. As centopeias dos táxis alinhavam-se com monotonia entre a caganeira dos pássaros e os carreiros intermináveis das formigas.
       – Ainda regressas hoje, Marta?
       Ela respondeu com a cabeça em sinal de assentimento.
       – É um felizardo esse teu marido.
       – Sim, o Bernardo é um bom homem, havias de gostar de o conhecer.
       – Claro – Consentíu João ao encontrar o monte de peças ferrugentas do carro.
       – Continuas com o mesmo carro!? – Observou a mulher.
       – É melhor irmos, Marta. Quero contar-te várias coisas, antes de partires de novo...
       E o carro arrancou. Um breve fumo cinzento evadíu-se-lhe do escape e um odor a gás queimado ficou a rastejar na superfície côncava do asfalto.

Cova da Piedade
Outubro
1992