1
A chama do isqueiro estremeceu no escuro, quando o barco, trespassado pela ferrugem cruel da idade, partíu, soltando espirros de velhice. Enquanto isso, os cardumes, a morrerem de asfixia, começavam a despontar a pele grisalha das escamas.
Acendi o cigarro e uma rajada de vento esbofeteou-me o rosto. Ajeitei a gola do sobretudo ao pescoço frio e fiquei em silêncio, a escutar, no perfeito encanto dos fedelhos, o ruído brusco do barco, cada vez que as vagas embatiam com violência na couraça ferrugenta.
No cimo, onde as nuvens corriam apressadas e onde a Lua – a jazer de aborrecimento – despontava a claridade dos olhos cansados, discerni o rasto de vultos a dançarem em desordem. E assim fiquei, com o cigarro esquecido no canto dos lábios, a recordar o voo picado das gaivotas, enquanto o barco, já longe, era agora o contorno magro de um corpo escanzelado, perdido no odor fétido do rio.
Baixei os olhos e as pupilas perderam-se a contemplar os pequenos brilhos indefinidos, espalhados ao longe, muito para lá do barco, muito para lá de todo aquele mar cinzento. E quando o barco finalmente desapareceu do horizonte, discerni, num aperto voraz de vómito, o rasto já longo dos peixes mortos.
Voltei-me e fiquei em silêncio, a perscrutar os ruidos que vinham da estação deserta. Algumas locomotivas jaziam de conformismo nos carris amolgados, enquanto o vulto de um vagabundo, sentado no chão, gemia versos de uma melodia popular qualquer. Com as mãos negras de lixo fazia gestos ordinários para os corpos estáticos das locomotivas e, os lábios, estraçalhados pelo frio, continuavam, num perfeito gesto conhecedor, a trautear os versos daquela melodia.
E nesse instante, quando o sopro turbolento de uma locomotiva quebrou o alêncio, as luzes de um automóvel brilharam ao longe. O vagabundo ergueu-se, vacilou uns passos e desapareceu numa esquina, por trás de um manifesto neo-racista, daqueles que decoram as paredes com poéticas ordens de libertação e robustos esboços de um genial orgão fálico em decomposição.
A locomotiva parou e um turbilhão de gente pareceu nascer do seu interior. Alguns soldados, de olhos esgazeados, procuravam na densidade opaca do nevoeiro que se começava a formar, a sombra inquietante do inimigo.
Algumas mulheres correram apressadas para os lavabos, enquanto os homens, de rosto cansado, surripiavam pontas de cigarros esquecidas nos bolsos das calças. As crianças, magras e muito brancas, soltavam berros histéricos de nervosismo, na ânsia de espantarem com êxito o cansaço insustentável do dia.
E foi quando o vagabundo surgíu, na mesma esquina, agora a mordiscar um prdaço de pão duro, que a encontrei. Estava em pé, junto ao automóvel, com as pontas dos cabelos a morrerem pelo pescoço. Ela sorríu-me uns lábios muito vermelhos e os seios, esborrachados num top preto, dançaram convulsivamente.
Atrás dela, escondido pelas caricías indecentes do nevoeiro, um barco soltou um gemido retumbante e as gaivotas, a sobrevoarem sem pressas, abocanhavam com as garras, restos de migalhas que jaziam nos beirais de pedra.
E nesse momento, quando o nevoeiro começava a envolver os nossos corpos e o cigarro me queimava os lábios, uma nesga de recordações rasgou-me as entranhas e fiquei, pasmado, a remoer o juízo em águas passadas.
A carne foi-me trespassada por um frio terrível, enquanto as pernas a chocalharem com violência, pareciam ceder ao peso quase incomensurável dos ossos. Imagens soltas começaram a surgir-me à frente, numa amálgama histérica de corropios, em que corpos chocavam entre si, liquefeitos de júbilo. Vi uma língua rastejar sobre os meus olhos, enquanto umas unhas afiadas se me enterravam nas nádegas, comprimindo-me os lábios contra uns seios molhados, onde uns mamilos retesados me esperavam.
Depois, quando me preparava para expelir o líquido emergente daquele enlevo, senti o peso desmedido de um chicote tocar-me as costas nuas. Tentei abrir a boca e gritar, mas dos lábios só irromperam alguns murmúrios roucos.
Foi o semblante estropiado do vagabundo que, ao passar por mim, me despertou daquela alucinação gelada.
Ana Carla continuava junto ao automóvel, a sorrir-me os lábios vermelhos.
Pequenas gotas começaram a brotar do céu escuro e no momento em que, um barco assobiava um adeus apressado, as gaivotas rasgaram os céus num estrépito retumbante, olvidando o silêncio maçudo dos mortais em baixo.
– Tive um sonho assombroso, querida.
Ela franzíu os lábios e encostou o rosto ao meu peito. Nesse instante, quando os nossos corpos se apertavam um contra o outro, o rasto gritante das gaivotas desapareceu; a amálgama de pequenas gotas que jaziam do céu, deram lugar a pesadas e frias lágrimas aguçadas e a minha paixão por Ana Carla pareceu morrer.
Um barco ancorou ao largo, mas, ninguém saíu. Apenas a voz desarticulada do vagabundo ecoava por entre as bátegas da chuva. Apenas a força das ondas embatiam no pontão retesado de moluscos carbonizados, onde a respiração destes, transbordava de ruídos.
Uma sombra, algo inquieta, surgíu detrás de uma locomotiva. O punho de um revólver cintilou por uns instantes quando o corpo da sombra mudou de posição. Um brilho metálico escapulíu-se-lhe da boca quando ergueu o objecto pungente da crucificação.
A rapariga fechou os olhos quando sentíu, com gozo, o baton escorrer-lhe para a língua seca. Depois, num grito quase inaudível, o corpo tombou no chão molhado. Uma última súplica pareceu reluzir ainda quando os lábios se encontraram, num breve e estremunhado beijo.
2
O vento soprava com violência enquanto a chuva, pesada e estridente, batia constantemente na vidraça da janela.
À minha volta não existia quase nada. O esqueleto de um velho aparelho de hi-fi, a expelir os compassos insinuantes de Michael Nyman, morria junto a um sofá vermelho enquanto que do tecto, um candeeiro branco pendia silencioso. Tal como um vampiro adormecido, à espera do odor nauseabundo do sangue, olhava-me sem interesse.
Ao fundo, na parede em frente, jazia o espectro empoado de um óleo de Salvador Dali. O quadro, de uma magnificiência perturbante, mostrava um homem completamente nu empunhando uma tosca cruz de madeira. Em frente, uma procissão de elefantes com pernas de aranhas desfilava numa harmonia de terror e sumptuosidade.
Quando Michael Nyman deixou de suspirar no aparelho de hi-fi e o vento pareceu diminuir, a figura alta de um homem surgíu à soleira da porta da sala. Estava vestido de negro e dos lábios pendia-lhe a ponta esturrada de um cigarro mal apagado. Usava óculos escuros e tinha uma espécie de estilete pendurado ao pescoço. Quando penetrou na sala, envolto numa auréola de superlativa postura de carniceiro, o peso descomedido das suas Doc Martens ressoaram com estrépito. O meu coração, a pulular num frenesim histérico, quase me saíu pela boca fora.
Não dissemos nada. Nesse momento, quando os nossos olhares trocavam repulsas incisivas e o meu coração parecia prestes a explodir numa gosma gorgolejante de carne retorcida e sangue pegajoso, só consegui pensar na minha velha mãe.
Imagens soltas começaram a surgir de rompante pela vista dentro. Eram imagens distorcidas, como um aparelho de TV sintonizado num canal sem emissão. Contudo, as imagens eram-me familiares. O rosto arqueado da minha mãe apareceu por momentos, como uma aparição indegesta e, um sufoco tremendo prendeu-me a respiração. Vi-a sorrir com júbilo. Era o sorriso que todas as vezes me agradecia, cada vez que os meus lábios tocavam as estrias verdes da sua face. Sempre me impressionara beijar aquelas veias salientes, uma vez que esperava, a qualquer altura, que elas me rebentassem na cara.
Vi tambem a morte. Os seus longos e esqueléticos braços pareciam querer sorver aquele pedaço balofo de carne desfalecida. Senti as batidas do coração alcançarem os píncaros do êxtase quando o rosto do demónio tomou forma.
– Vém! Xavier espera-te! – A voz, contudo, não me pareceu satânica.
– Aonde?
O homem olhou-me de soslaio e desapareceu num corredor intensamente frio. As Doc Martens tornaram a ressoar como um turbilhão de correntes ferrugentas. A sua sombra confundíu-se entre o emarenhado estrambólico de cadeiras partidas, aguarelas infindáveis de um amarelo berrante, caixotes por abrir e algumas garrafas vazias de Vodka. O seu corpo tornou-se consistente de novo quando, num suspiro mais de alívio do que de receio, entrámos numa sala bem mais quente.
Até mim chegaram alguns gritinhos extasiantes e de novo começaram a brotar do meu cérebro cansado, ideias absurdas sobre o fim do mundo. Começava a ficar farto daquelas paranóias catalépticas que jorravam insistente-mente do meu cérebro.
Uma porta abríu-se e uma rapariga entrou. Estava nua. O vermelho espesso dos lábios parecia laivos escarrados de uma pintura surrealista qualquer. Um vómito apressado arranhou-me a garganta quando Ana Carla, a olhar-me com estranheza, pronunciou o meu nome.
3
– Leva-me essa gaja daqui, Rui! – Berrou uma voz atrás da porta .
As Doc Martens ressoaram muito perto dos meus ouvidos e depois afastaram-se, lentamente, em passadas curtas. Ana Carla desapareceu tambem. Já só pude ver, quando me voltei, a sombra recheada de dois palmos de carne branca violentamente rasgada, afastando-se, tambem ela, em lentos passos embriagados.
– Entra, puto! – Ordenou a voz atrás da porta.
E então imaginei que, ali algures, por detrás daquela porta, pudesse haver um caldeirão abrasado onde um demónio qualquer repelia com a cauda, o suco pastoso dos seus excrementos. Vi os meus olhos derreterem-se fantasticamente depressa quando transpús a soleira da porta.
Xavier encontrava-se sentado numa cadeira de madeira toscamente trabalhada. Os seus olhos expeliam uma insolência desmedida e parecia encontrar-se completamente drogado.
– Como está a queridinha da tua mãe, puto?
Não podia ser um cumprimento mais saudável.
– Tenho outro trabalho para ti – Retirou uma beata do bolso da camisa e prendeu-a entre os lábios. Uma chama estremunhou com dificuldade e logo uma baforada serpenteou no ar. Um odor como que a folhas de eucalipto ficou a pairar acima de nós. – Desta feita é algo mais pessoal.
– Como assim? Ana Carla era-me mais que pessoal.
– Claro, já me esquecia. O puto é um pobre coitado sem ninguém.
– As coisas hão-de recompor-se.
– As coisas nunca se hão-de recompor, puto! Nunca, enquanto os meus cães andarem atrás do teu cu.
Tornei a ouvir, ao longe, as Doc Martens martelarem o soalho nu do corredor.
– Podes pagar-me já, Xavier?
O homem olhou-me despropositadamente para as mãos e depois perfurou-me a vista com um hálito quente de nicotina e haxixe.
– Claro que te posso pagar já.
O homem apagou a beata contra a sola da bota esquerda e ergueu-se, qual potente massa de calcário e argila. Colocou as mãos pesadas sobre os meus ombros e, por momentos, pareceu-me que os olhos podiam desprender-se-lhe a qualquer momento da cara, como duas ampolas sugadas para o espaço.
– Que vais fazer a Ana Carla?
– Hum! Ana Carla é um belo pedaço de míuda. Vai-nos render, de certeza, umas quantas massas valentes. Mas não te preocupes, puto, não a vamos matar.
– E quando derem pela falta dela, Xavier?
O homem lançou uma gargalhada estridente e depois apertou-me as duas bochechas com os dedos amarelos.
– Tu sabes como nós trabalhamos, puto. Quando as coisas correm bem, quando as míudas se portam de modo correcto, todos nós somos felizes. O resto não interessa. A família dela agora somos nós.
Para Xavier tudo era muito simples. Até o facto de eu passar a pertencer à sua elite de assassinos e estupores sem consciência, era um facto mais que consumado da minha existência. Estava como que predestinad, à muito, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu, um pobre coitado habituado a trabalhos de merda, envolto numa seita crapulosa! Só de pensar dava-me arrepios. Por outro lado, precisava de dinheiro. Endividado como estava, mais crasso, para não dizer estúpido, seria não aceitar aquela oportunidade. De qualquer forma, os vícios sustentam-se com a maldita sobriedade do dinheiro e nada mais.
– Que tens em ideia, Paulo?
O nome! Ele havia pronunciado o meu nome. Era de facto um acto louvável. Já estava a ficar farto daquela conversa do puto.
– Bom, o que quero dizer é que... – Hesitei. Xavier era um indivíduo com um temperamento psicológico algo instável. – O que quero dizer é que aceito, simplesmente isso.
– Bravo, Paulo! Vejo que estiveste a trabalhar a massa cinzenta do cérebro. Um homem como tu dá sempre jeito.
Nesse momento, a sombra do carniceiro de óculos escuros surgíu à soleira da porta. Trazia uma bolsa escura na palma da mão.
– Aqui está o Rui com a tua recompensa, Paulo.
Com uma certa indecisão, vi as minhas mãos avançarem periclitantes para a bolsa escura. Ao apertá-la contra o peito ofegante, esperei ouvir o tinir fraco das moedas a debaterem-se numa orgia louca de metal, mas, em vez do estrépito marulhar do níquel, apenas um denso vazio pareceu estrebuchar devaneios. Quando abri a bolsa, vários rostos de Anteros de Quental aparece- ram escarrados em infindáveis notas verdes.
– Uma gratidão minha pelo teu próximo serviço, puto.
Pronto, de novo aquela denominação ridícula e tão despropositada.
– Pressuponho que seja uma condição irrevogável...
– Evidente.
– E qual é o serviço?
– Matar a tua queridinha mãezinha – O cabrão não podia ter sido mais directo. – Vendo bem as coisas não me convém fornecer morfina a uma velha com os pés prá cova. É pouco ortodoxo para o meu ideal. E além disso é um peso que tiras dos ombros.
Ideal? O homem estava a ficar paranóico. O gajo mal sabia escrever a porra do nome e vinha-me agora com ideais. Que grande filho da puta!
Uma voragem pouco civilizada começou a nascer de dentro de mim, quando saí para a rua. Um dia destes Xavier tinha de morrer.
A chuva havia parado mas, o céu, possesso de um cinzento carregado, expiava-me com os seus olhos pardos, prontos a segregarem de novo o líquido expurgante a que os mortais chamam de chuva.
O vento bateu-me na cara e pus-me a imaginar ideias absurdas sobre formas de extermínio. Atrás de mim, atravessando frinchas e janelas mal fechadas, o Memorial de Michael Nyman recomeçava a sua marcha embriagadora.
4
O barco atracou, como sempre, após várias tentativas desleixadas do comandante de bordo, para amainar a força brutal da besta de guerra.
Alguns passageiros, mais absortos em conseguirem um primeiro lugar à saída, do que na distracção da paisagem corrosiva que se lhes apresentava, cambalearam, qual bêbedos engripados, num rodopio bestial de um lado ao outro. Ouviram-se algumas gargalhadas e logo um estalo esganiçado ecoou pela embarcação. Finalmente as cercas que prendiam aquele gado seboso abriam-se. Uma debandada feroz de ciganos irrompeu aos berros, enquanto um puto pequerrucho, a chupar num dedo quase esfarelado, observava, assustado, aquela histeria hipócrita dos adultos.
Por fim, quando o gado se afastava já a uma distância razoável, pude, com um esfuziante sorriso despropositado, sentir de novo o vento bater-me na cara. Algumas gotas expurgantes pingaram-me o rosto gelado e um arrepio constrangedor dançou-me pelas vértebras abaixo. Estava a precisar de uma bebida. Algo mesmo forte. Um Vodka, talvêz.
Enquanto atravessava o cais do Gingal numa preguiça descomunal, bocejando e perscrutando gargalhadas que se perdiam atrás de mim, pensamentos audaciosos devastavam-me o cérebro, como picadas súbtis de agulhas de acumpuctura.
Eram ideias descabidas de lucidez, onde perpetuava o rosto engelhado da minha mãe, quase sempre a olhar para o infinito, num calmo e conturbado esgar de louca. Depois, como num sopro, a sua imagem desvanecia-se e surgía a silhueta imponente de Xavier, a fumar o seu cigarro de haxixe. Não dizia nada, limitava-se a estar ali, a observar-me, como uma sombra encolerizada.
Levei um cigarro aos lábios quando avistei o bar. Recostei-me às paredes de um armazém abandonado e inclinei-me sobre o isqueiro. Uma chama vacilou por momentos acabando, de seguida, por se esvair num sopro violento. Uma nova chama estalou e o cigarro incendiou-se num galope. Inspirei o fumo e continuei a caminhada sonolenta até ao esqueleto recatado da minha embriaguêz.
O meu espirito, entretanto, havia já perdido o fio daquelas visões quando encontrei a porta do bar. Empurrei a porta mas esta não se abríu. Bati incansavelmente na porta e algumas lascas de madeira começaram a soltar-se. Berrei para que me abrissem a maldita porta mas, um infindável silêncio intransponível crescia ao meu redor. Só o ruído fraco das vagas embatiam contra o pontão.
Foda-se! Gritei disparatadamente quando me recostei contra a porta quase desfeita. E logo agora que precisava de uma bebida.
Lancei um longo bafo e fiquei a observar a mancha ferrugenta que atracava no cais de Cacilhas. Uma série de indíviduos inundou o cais numa procissão desvairada e, logo depois, uma outra vaga de gente avançou violentamente para o mesmo barco. Aquelas constantes chegadas e partidas punham-me doido.
Entretanto e, quando o cigarro se esvaía discretamente num retalho de mortalha e restos de tabaco queimado, um disparo presciente invadíu-me o espirito: e se Xavier estivesse simplesmente a comprometer a minha vida? Como? Uma armadilha! Seria possível que Xavier tivesse pensado em tal monstruosidade?
E afinal quem era Xavier, se não um velhaco de pedagogias baratas, habituado a controlar a vida dos outros; um cabrão que predestinava destinos a troco de uma valente pipa de massa. Um filho da puta que agora exigia o homicídio da minha pobre mãe – velha histérica adicta da morfina. Era uma história precária aquela.
Depois, quando o céu era já um manto negro de irregularidades deixei de pensar em todos aqueles disparates. Sim, Xavier tinha razão: a velha tinha que morrer. E se os meus pensamentos fossem verídicos, Xavier, tambem ele, iria dar o peido mestre.
5
Não ouvi o martelar brusco da TV quando abri a porta. Tambem não ouvi nenhuma voz a tagarelar inconscientemente ao acaso, mas sabia que ela estava ali.
Ao entrar na sala o seu olhar não se desviou. Tinha as duas azeitonas pretas dos olhos cravados no ecran desligado da TV. Um sorriso insólito desprendia-se-lhe dos cantos engelhados da boca. Estava recostada no sofá e uma manta preta cobria o que lhe restava das pernas. Os dedos, trémulos e muito gastos, premiam constantemente os botões do telecomando, enquanto os olhos, absortos no infinito, se deliciavam com as imagens inventadas que saíam da TV morta.
Fiquei, por momentos, sem saber o que fazer: se havia de virar costas e afundar-me nas coxas de uma puta qualquer ou puxar o gatilho do revólver que tinha no bolso.
Entretanto, quando o vento parecia querer quebrar as vidraças, recordei-me de coisas à muito esquecidas. Eram sonhos que regressavam agora como se fossem um assombro tremendo: vía-me como um míudo tolo a trespassar os céus, montado no meu anjo da guarda e tudo à minha volta não passava de meras coisas insignificantes. As casas, as pessoas, os animais eram como se não existissem, eram como se não fizessem parte da realidade. Só o céu existia como fronteira da nossa presença. Minha e do meu anjo da guarda de penas imaculadamente brancas.
Depois o sonho tornou-se incongruente. O anjo começou a perder altitude e as penas que lhe cobriam todo o dorso, tornaram-se incrivelmente da cor do sangue. O anjo começou a ganir de sofrimento enquanto as asas pareciam agora descontroladas. Tambem gritei quando me apercebi que era do meu peito que o sangue jorrava. E lá em baixo, de braços estendidos, como um espantalho esventrado, a Morte esperava-nos ansiosa.
Foi quando uma rajada mais forte embateu nas vidraças que acordei. O anjo havia desaparecido e o rosto indefinido da Morte já não esperava por mim. Do meu peito, o sangue havia tambem cessado de jorrar.
Ergui então o revólver e fiz pontaria ao esqueleto cirroso da minha mãe. Um som estrondoso ecoou pela sala quando premi o gatilho. O corpo da velha caíu no chão com um baque sólido e um rio de sangue começou a formar-se ao redor do coração.
E nesse momento, quando as minhas mãos começavam a tremer, o vulto do carrasco de óculos escuros penetrou na sala. Olhou-me de soslaio e retirou um machado do interior de uma sacola verde escura. Ajoelhou-se ao lado da cabeça da velha e antes de desferir o golpe sacrílego, sorríu-me uns dentes amarelos. Depois, um jacto de sangue espalhou-se à minha volta. Nem uma ponta de ressentimento brotou do meu coração quando o carrasco ergueu a cabeça decepada.
Eu sabia que algo em mim havia sido libertado. Algo que se encontrava perdido entre sentimentos estúpidos e choros infantis. Uma espécie de besta rompera, por fim, o casulo do seu refúgio e começava a esculpir obras diabólicas.
Não senti vómitos nem qualquer sensação de náusea quando uma segunda bala desfêz, num instante, os miolos do carrasco.
6
Estavamos sentados de frente um para o outro. Eu, afundado no sofá vermelho, perscrutava em silêncio, as linhas do rosto de Xavier. Este, de olhar esgazeado, parecia adormecido de encontro à parede onde jazia o óleo de Salvador Dali.
– Era suposto o Rui vir comigo, Xavier? – Inquiri, num tom carrancudo.
– Era! O gajo devia ter vindo contigo, caramba!
– Sabes que não gosto da companhia dele, Xavier.
– Eu sei, porra!
– Então porque o mandaste atrás de mim?
– Ora, era necessário. Mas porque raio estás a falar desse modo? Que foi...
– Não fiz nada, Xavier – Interrompi-o, sacudindo um pequeno montículo de pó que se havia formado na ganga consumida das minhas calças. – Onde estão os outros dos teus gorilas?
– Porquê?
– Nada.
Xavier tentou erguer-se com a ajuda das mãos mas as pernas cederam e, por um momentâneo segundo, pareceu-me que todo o seu corpo se desintegraria se, na verdade, o conforto daquela parede não existisse.
– Ajuda-me, Paulo – Pedíu, aflito. – Estou doente...
– Pelo que percebo, nem a puta das pernas aguentas.
O homem olhou-me com desprezo e retirou um charro do bolso da camisa. Colocou o retalho amorfo entre os lábios e a chama de um fósforo tremeu de convulsão. O homem inspirou profundamente. Momentos depois, o azul matizado do fumo que se libertava das suas narinas, lembrou-me o nevoeiro denso do Tejo nas manhãs frias de inverno.
– A minha parte do acordo já está cumprida, Xavier.
– Acordo? Que acordo? Não me lembro de acordo nenhum.
Nesse instante, quando o homem começava a tossir convulsivamente, como um moribundo enlameado no escarro do seu próprio vómito, o corpo do pequeno revólver surgíu nas minhas mãos. O revólver, pesado e ferrugento, parecia ainda fumegar o beijo que libertara a minha mãe do inferno.
– É verdade, Xavier. Nunca houve acordo nenhum.
O homem empalideceu de repente e os olhos, esbugalhados de medo, enfrentaram a negridão do cano do revólver.
– É a míuda que queres? Podes levá-la. Os clientes não param de fazer queixa dessa cabra de merda. Já não preciso dela, podes levá-la!
– É a ti que eu quero, parvalhão, e não à Ana Carla. Deixá-la roçar a cona nos hipócritas dos teus clientes.
Naquele momento vi-me como um cowboy solitário num duelo ao pôr do sol, com as botas a apertarem-me os calcanhares e o chapéu a cobrir-me o rosto de sombras frias.
– Tu não me podes matar, Paulo.
– Porque deixaste de repente de me tratar por puto?
O homem não respondeu e uma primeira bala estilhaçou o vidro do óleo. Algumas lâminas de vidro ressaltaram para a guedelha de Xavier e, este, acotovelando-se de encontro à parede, começou a chorar de horror.
– Pareces um filho da puta efeminado, Xavier. Não sabia que os homens de ideais tinham receio da morte.
Uma segunda bala zuniu desgrenhadamente no seu ouvido direito, embatendo violentamente na tinta branca da parede. O homem gritou e uma palidez quase cadavérica assolou-lhe as faces.
– Detesto ver homens a chorar, Xavier. Diz-me que não estás a chorar. Vá, diz!
E muito antes que o homem pudesse mover os lábios e articular palavras que não queria ouvir, uma terceira bala escapulíu-se do cano negro do revólver. E muito antes que o homem pudesse alcançar a mão de Deus, uma impetuosa garra de pólvora crivava-se-lhe na testa desprotegida. Um fio de sangue irrompeu apressado do buraco da testa. E como as lesmas que se arrastam com sofreguidão, o sangue escorregou pelo cano do nariz abaixo até atingir a imperfeição do soalho estragado.
Ergui-me do sofá vermelho e caminhei até ao cadáver do homem. Apanhei o charro esquecido junto à parede e coloquei-o entre os lábios. E enquanto regressava à estabilidade do sofá vermelho, um aroma adocicado ficou a pairar nas paredes viscosas da minha boca.
Descansei o revólver no colo e fiquei, maravilhado, a escutar os tossidos roucos que o homem já não fazía.
Cova da Piedade
Novembro
1993